Parte I. Livro IV. Capitulo XL.
Vida do Veneravel Fr. Honorio de Santa Maria
997 A ultima Guardianîa que teve, foy no Convento de Cintra; e sendo absoluto della, lhe concedeo o Provincial, que ficasse morador no mesmo Convento, por lje naõ faltar à espiritual consoluçaõ, que nela sentia; e com licença dos Prelados elegeo por cela huma cova, que está na Cerca, naõ como a de Melibeo toda frondosa, mas sim como aquella de que falla Quinciano, sombria, triste, e medonha, cuja horrorosa vista intimida aos humanos para a verem, quando mais para a habitarem. Ninguem a vê, sem que lhe sirva para despertador da morte; e todos ouvem assombrados, que nele podesse viver dezaseis annos continuos Fr. Honorio, contando já oitenta de idade. A sua cama era huma cortiça, e huma pedra, ou pao lhe servia de cabeceira, sem outra alguma cobertura, com que se pudesse reparar dos frios, mais que a de dous grandes penedos, que lhe impedem a claridade. Nela assistia de dia, e de noite até às Matinas, e as poucas horas que dava de decanso ao corpo, sempre era encolhido. Todas as noites vinha rezar Matinas ao Coro; e o tempo, que restava até se tanger a Prima, passava em altissima contemplaçaõ diante do Santissimo Sacramento, em cuja presença fazia huma dsciplina taõ dilatada, como rigorosa. O sangue, que derramava, o arguia de cruel; porém as feridas se convertiaõ em bocas, que publicavaõ os triunfos da penitencia, contra os ardilosos combates do demonio, que se desvelava em o perseguir.
998 Parecia-lhe limitado este castigo, para domar a rebeldia da carne, que sempre repugna à mortificaçaõ, e usava de hum cilicio de cairo, com que cingia quasi todo o corpo, em cujo tormento rara vez dispensava. Todas as sestas feiras apparecia no refeitorio com hum molho de sylvas ao pescosso, e com os olhos nellas dizia a sua culpa, e tomava a refeiçaõ de paõ, e agua. Nas da Quaresma, em sinal de como trazia na memoria muito presente a Paixaõ do seu amado Jesus, vinha rodeado da contura para cima das mesmas sylvas: disciplinava-se até lhe fazer o Prelado final, e comia em terra. Depois de satisfeitas as suas obrigaçoens, occupava-se nos exercicios mais humildes dos Conventos, mondando a Horta, e alimpando com huma enxada as ruas da Cerca, e outros mais que estavaõ entregues aos cuidados dos Coristas. Prezava-se de muito amante de tanta pobreza, e naõ lhe parecia bem outra cousa, mais que a que se ordenava a obsequiar esta virtude. Para mayor lustre da sua observancia, naõ tinha cousa alguma do seu uso, mais que o Habito, taõ vil, como composto de pedaços de varias cores, taõ estreito, que mal o podia vestir, e taõ curto, que apenas lhe chegava aos artelhos dos pés, e pulsos dos braços; e para que nestas partes se não desfiasse, o fortalecia com ourellas de coiro, e lhe ficavão tambem servindo de aspero cilicio.
999 Com as aguas da penitencia em que se purificavaõ os peccadores, saciava este Servo de Deos a sede, que tinha de lhe salvar as almas, assistindo no Confessionario de dia, e de noite. Tal era a graça, com que ministrava o Sacramento da Penitencia, e taõ copiosos os frutos, que das suas exhortaçoens colhiaõ os penitentes, que de terras muito distantes o vinhaõ procurar, para alivio das suas consciencias. Em muitas occasioens lhe succedeo pelo grande concurso de gente, estar no Confessionario desde a manhãa até à noite; e quando neste tempo vinha tomar a refeiçaõ corporal, se contentava com paõ, e agua, pedindo licença aos Prelados para dar o mais, que lhe haviaõ guardado, a alguns pobres, que havia confessado. Com este caritativo zelo, quando naõ vinhaõ os penitentes ao Convento, os procurava elle nas suas Freguezias, offerecendo-lhe prompta a suas almas a suave medicina da penitencia. Também os industriava na doutrina Christãa, santo exercicio da oraçaõ mental, e com grande empenho os persuadia, a que professassem a Terceira Regra do nosso serafico Patriarcha, e a observassem em suas casas, o que via observando com extremosa consolaçaõ do seu espirito, e grande gloria de Deos. Chefavaõ repetidas as noticias destas exemplaridades ao Arcebispo de Lisboa D. Jorge de Almeida, e costumava dizer, que naõ havia no seu Arcebispado, quem fizesse mais fruto nas almas dos seus diocesanos, que o Padre Fr. Honorio, e naõ deixava de o encarecer assim aos Prelados, quando o visitavaõ.
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