sábado, 7 de março de 2009

Vida do Veneravel Fr. Honorio de Santa Maria (parte 2)

"Espelho de Penitentes e Chronica da Provincia de Santa Maria da Arrabida", da autoria de Fr. Antonio da Piedade (Lisboa, 1728).

Parte I. Livro IV. Capitulo XL.

Vida do Veneravel Fr. Honorio de Santa Maria


997 A ultima Guardianîa que teve, foy no Convento de Cintra; e sendo absoluto della, lhe concedeo o Provincial, que ficasse morador no mesmo Convento, por lje naõ faltar à espiritual consoluçaõ, que nela sentia; e com licença dos Prelados elegeo por cela huma cova, que está na Cerca, naõ como a de Melibeo toda frondosa, mas sim como aquella de que falla Quinciano, sombria, triste, e medonha, cuja horrorosa vista intimida aos humanos para a verem, quando mais para a habitarem. Ninguem a vê, sem que lhe sirva para despertador da morte; e todos ouvem assombrados, que nele podesse viver dezaseis annos continuos Fr. Honorio, contando já oitenta de idade. A sua cama era huma cortiça, e huma pedra, ou pao lhe servia de cabeceira, sem outra alguma cobertura, com que se pudesse reparar dos frios, mais que a de dous grandes penedos, que lhe impedem a claridade. Nela assistia de dia, e de noite até às Matinas, e as poucas horas que dava de decanso ao corpo, sempre era encolhido. Todas as noites vinha rezar Matinas ao Coro; e o tempo, que restava até se tanger a Prima, passava em altissima contemplaçaõ diante do Santissimo Sacramento, em cuja presença fazia huma dsciplina taõ dilatada, como rigorosa. O sangue, que derramava, o arguia de cruel; porém as feridas se convertiaõ em bocas, que publicavaõ os triunfos da penitencia, contra os ardilosos combates do demonio, que se desvelava em o perseguir.

998 Parecia-lhe limitado este castigo, para domar a rebeldia da carne, que sempre repugna à mortificaçaõ, e usava de hum cilicio de cairo, com que cingia quasi todo o corpo, em cujo tormento rara vez dispensava. Todas as sestas feiras apparecia no refeitorio com hum molho de sylvas ao pescosso, e com os olhos nellas dizia a sua culpa, e tomava a refeiçaõ de paõ, e agua. Nas da Quaresma, em sinal de como trazia na memoria muito presente a Paixaõ do seu amado Jesus, vinha rodeado da contura para cima das mesmas sylvas: disciplinava-se até lhe fazer o Prelado final, e comia em terra. Depois de satisfeitas as suas obrigaçoens, occupava-se nos exercicios mais humildes dos Conventos, mondando a Horta, e alimpando com huma enxada as ruas da Cerca, e outros mais que estavaõ entregues aos cuidados dos Coristas. Prezava-se de muito amante de tanta pobreza, e naõ lhe parecia bem outra cousa, mais que a que se ordenava a obsequiar esta virtude. Para mayor lustre da sua observancia, naõ tinha cousa alguma do seu uso, mais que o Habito, taõ vil, como composto de pedaços de varias cores, taõ estreito, que mal o podia vestir, e taõ curto, que apenas lhe chegava aos artelhos dos pés, e pulsos dos braços; e para que nestas partes se não desfiasse, o fortalecia com ourellas de coiro, e lhe ficavão tambem servindo de aspero cilicio.

999 Com as aguas da penitencia em que se purificavaõ os peccadores, saciava este Servo de Deos a sede, que tinha de lhe salvar as almas, assistindo no Confessionario de dia, e de noite. Tal era a graça, com que ministrava o Sacramento da Penitencia, e taõ copiosos os frutos, que das suas exhortaçoens colhiaõ os penitentes, que de terras muito distantes o vinhaõ procurar, para alivio das suas consciencias. Em muitas occasioens lhe succedeo pelo grande concurso de gente, estar no Confessionario desde a manhãa até à noite; e quando neste tempo vinha tomar a refeiçaõ corporal, se contentava com paõ, e agua, pedindo licença aos Prelados para dar o mais, que lhe haviaõ guardado, a alguns pobres, que havia confessado. Com este caritativo zelo, quando naõ vinhaõ os penitentes ao Convento, os procurava elle nas suas Freguezias, offerecendo-lhe prompta a suas almas a suave medicina da penitencia. Também os industriava na doutrina Christãa, santo exercicio da oraçaõ mental, e com grande empenho os persuadia, a que professassem a Terceira Regra do nosso serafico Patriarcha, e a observassem em suas casas, o que via observando com extremosa consolaçaõ do seu espirito, e grande gloria de Deos. Chefavaõ repetidas as noticias destas exemplaridades ao Arcebispo de Lisboa D. Jorge de Almeida, e costumava dizer, que naõ havia no seu Arcebispado, quem fizesse mais fruto nas almas dos seus diocesanos, que o Padre Fr. Honorio, e naõ deixava de o encarecer assim aos Prelados, quando o visitavaõ.

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