quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Os frescos seiscentistas do Convento dos Capuchos

por Vitor Serrão (1982)

Erigido entre as fragas graníticas da Serra de Sintra, cingido por frondosa vegetação e alcantilados penedos, o antigo Convento de Santa Cruz dos Capuchos constitui um dos grandes atractivos turísticos da região sintrense. Ermitério de franciscanos arrábidos cuja fundação remonta a 1560 e se deve a D.Álvaro de Castro, fidalgo do Conselho de Estado e Vedor da fazenda de D.Sebastião, em cumprimento de um voto de seu pai, D.João de castro, vice-rei da Índia, o conventinho aparece-nos despido de requintes ornamentais e de pompa arquitectónica, com as suas celas e depedências forradas de cortiça e reveladoras de uma impressionante simplicidade - simplicidade esta que tanto comoveu D.Filipe II, e que foi motivo de farta inspiração para os artistas do Romantismo, desde o viajante William Beckford ao gravador W.H.Burnett.

De facto, "tudo é miniatural e troglodítico: o dormitório, de cleas forradas a cortiça; o refeitório, com a sua tosca laje a servir de mesa; a igrejinha, cuja abóboda aproveitou a própria rocha e em que o luxo consiste apenas no altar de mármore e no frontal de embutidos..."(2). O célebre Cork Convent dos românticos ingleses foi propriedade dos Viscondes de Monserrate após a supressão das ordens religiosas (1834), tendo sido adquirido em 1873 ao Conde de Penamacor (3), e entrou mais tarde na posse do Estado.

Uma das curiosidade turísticas deste minúsculo cenóbio, que empolgou a alma romântica de artistas e poetas como Lord Byron, é a Gruta de Frei Bento Honório, situada algumas dezenas de metros à direita da cerca conventual: nesse antro viveu durante trinta anos aquele frade (1566-1596), que aí expiou os seus pecados, desde então veiculados em piedosas lendas populares. Uma modesta lápide encimada por uma cruz assinala o local da gruta onde Honório cumpriu a sua longa penitência. Como diz Byron no seu Childe Harold's Pilgrimage (1809), "Honório aqui padeceu, só, Inverno após Inverno/A fim de ganhar o Céu fez da Terra um longo Inferno".

Todo o monumento, apesar de oficialmente classificado, e da grande atracção turística que continua a auferir para todos os visitantes de Sintra, encontra-se hoje num estado de abandono e degradação deveras lamentável. Há alguns anos desapareceram da Igrejinha conventual dois castiçais e duas imagens seiscentistas (4), e as peças ornamentais que ainda subsistem encontram-se carecentes de reintegração. Até quando?...

Flaqueando a modesta cancela em cortiça que fez serventia com o recinto do ermitério, abrigada por duas grossas lajes, penetramos no pátio capuchinho que dá acesso à igrejinha de Santa Cruz e, à direita, ao oratório do Senhor dos Passos.

Entre as duas portas que dão acesso aos dois locais de culto do cenóbio, existe uma muito deteriorada pintura sobre tábua, ainda presumivelmente quinhentista, que representa um frade franciscano crucificado. Essa pintura, recortada em forma de cruz, executada em grossa prancha de castanho, detará acaso da época da fundação e reveste-se de valia iconográfica. A sua exposição às intempéries agravou o estado da película pictural, hoje muito desvanecida, pelo que se impõe uma intervenção laboratorial do Instituto de Restauro José de Figueiredo e, posteriormente, o seu desvio resguardo. Neste átrio estiveram sepultados, em lápides desprovidas de inscrição que ainda se vislumbram, o fundador do Convento e a sua mulher D.Ana de Ataíde.

Na igrejinha, além do altar marmóreo, onde existiam as duas desaparecidas imagens estofadas, do século XVII, é o excelente frontal barroco de embutidos polícromos, do final da mesma centúria (do tipo dos de mestre João Antunes), que mais prende a atenção e confere dignidade ao singelo interior.

A capelinha do Senhor dos Passos, defronte da igreja, está forrada por azulejaria de meados do século XVIII, de pintura azul sobre esmalte branco, representando passos biblícos (Flagelação de Cristo, Coroação de Espinhos), a qual já foi devidamente estudada por Santos Simões (5). A abóboda é também azulejada, com pequenos quadros do mesmo estilo e época (emblemas da Paixão), e o tímpano da porta contém um paínel cerâmico do Calvário, também de 1750.

A pequenina ermida-oratório que se segue na cerca, fundação do Cardeal D.Henrique, preserva um frontal de azulejos do início de setecentos, com sanefa e sebastos (6) e, no altar uma boa imagem pétrea de Nossa Senhora da Piedade, de lavor quinhetista. É na parede exterior do oratório, flaqueando a entrada miniatural, que se encontram os "frescos" do século XVII de que nos ocupamos nos presente estudo.

No singelo recanto de apazível recolhimento, sob uma cobertura de cortiça e com bancos nos flancos, deparamos na parede fundeira, ladeando a porta que faz serventia com o oratório, com duas composições picturais que desde logo chamam a nossa atenção. Representam estas pinturas, executadas a "fresco" sobre o reboco fruste do pano parietal, as figuras de São Francisco de Assis, à esquerda, e de Santo António de Lisboa, à direita. Composição simples, mas de pincelada envolvente e larga, dinamizada por um colorido matizado que sublinha valores plásticos e ressalta volumes às carnações e panejamentos, define a presença de um artista de mérito. Infelizmente, estes murais, assim expostosàs intempéries, vêm acumulando falhas graves na sua estrutura orgânica, desvanecendo-se valores e detalhes, sumindo-se algumas zonas extensas (como a zona interior do "fresco" de Santo António de Lisboa), etc. Uma inscrição que ocorria em jeitos de friso, a zona superior da composição, encontra-se quase totalmente diluída por efeito dos tempos. Tudo isto obriga a que se tomem as necessárias providências, sem o que num futuro próximo nos veremos privados de mais estas obras, bem significativas do nosso património pictural.

Trata-se de pintura do primeiro terço do século XVII, adequada ao espírito de singeleza de todo o conjunto dos Capuchos, e nessa perspectiva global deve ser visionada. Notem-se os fundos neutros, acentuando-se tão só os perfis dos ícones representados - trata-se dos santos franciscanos por excelência -, e o desenho bem modelado, que um insípido tenebrismo envolve e dinamiza. Não é já a visão idealizada do Maneirismo que transparece nestas composições fresquistas, antes uma pintura concebida segundo um renovado naturalismo (de espírito protobarroco) que prevalece no desenho, na modelação e nas preferências cromáticas.

Deu recentemente entrada no espólio do Arquivo Histórico de Sintra (Palácio Valenças) um pequeno livro manuscrito, com capa cartonada, intitulado A Serra de Sintra, poema em oitavas divididas em seis cantos. Trata-se de um curiosíssimo poema, não assinado nem datado, que pelo seu conteúdo e estilo supomos remontar à segunda metade do século XVII e ser devido a um anónimo religioso da Ordem de S.Jerónimo, professo do Mosteiro manuelino de Nossa Senhora da Pena. O poema, repleto de curiosidades e de informações preciosas sobre a região de Sintra, merece obviamente uma análise cuidada, que não cabe no âmbito deste breve apontamento. Interessa reter, agora, as informações valiosas que o autor nos dá quando descreve, no seu Canto Segundo, o Convento dos Capuchos:

"Não se vê de aparatos sumptuozos
este pobre Edifício remendado
nem ornado de vazos preciosos
mas de hum penedo só mal assentado.
Contudo de excellentes e famozos
peitos (que o Mundo tem maravilhado)
se vê, que a francisco sancto imitando,
estão no Ceo já triumphado." [...]

Depois de descrever a igreja e as dependências do ermitério, o anónimo poeta seiscentistas alude, na estroge 11, às pinturas decorativas existentes no Convento dos Capuchos e ao seu autor:

"Pella mão de Reinozo estão pintadas
muytas figuras de estranha excellência,
tão ricas, tão perfeitas e acabadas,
que não pode ahy auer mór eminência.
Apelles e as mãos mais celebradas
que nesta arte mostrarão mais sciencia
mais sublimada couza e mais divina".

Pese embora o tom laudatório do comentário às pinturas e ao artista que as executou, parece-nos segura a relacionação desta referência poética com os murais em causa neste breve apontamento de campo. Note-se, para mais, que o autor se não refere a "painéis", e sim a "figuras pintadas", o que não faria se se tratasse de peças de altar. Naturalmente, os "frescos" de S.Francisco de Assis e de Santo António de Lisboa são apenas os resíduos de uma decoração fresquista de maiores dimensões, estendida a outras dependências do cenóbio que não só ao exterior da capela-oratório do Cardeal D.Henrique, e hoje limitada àqueles dois murais.

Assim, estamos face a uma decoração da autoria do famoso pintor seiscentista André Reinoso, dando-se crédito à fonte manuscrita e à análise plástica das próprias pinturas - as quais, em boa verdade, não deixam de revelar muitas afinidades com outras bem identificadas de Reinoso.

André Reinoso, originário de uma família de abastados cristãos-novos da Beita Alta (porventura de origem castelhana), está bem identificado, por documentação já publicada, entre 1610 e 1641. Sabemos que a sua família foi bastante experimentada e perseguida pelo Santo Ofício, por motivos de judaísmo, e tal facto deve explicar porque o artista nunca terá atingido o cargo de pintor régio, mau-grado a sua inegável qualidade artística, como "chefe-de-fila" dos tenebristas.

Discípulo do pintor maneirista Simões Rodrigues, segundo atesta o memorialista Félix da Costa Messen na sua Antiguidade e Nobreza da Arte da Pintura (1696), Reinoso enveredou antes pelo novo naturalismo tenebrista preferido pelos pintores seiscentistas, sendo neste processo de modernização da nossa pictória um pioneiro. (...)

De 1628-1630 são as pinturas de Reinoso para a igreja da Misericórdia de Óbidos, que pudemos identificar e estudar com base na preciosa documentação descoberta no arquivo local. À mesma fase pertencem algumas telas da Igreja de S.Tiago de Beja (identificadas em 1978), uma Coroação da Virgem na Igreja da Madre de Deus (coro baixo), uma Assunção no Museu de Aveiro, etc. Datadas de 1641, existem no depósito do MNAA duas tábuas onde as tendências de caravagismo mais se desenvolvem, a par de uma qualidade de desenho muito evoluída; trata-se de uma adoração dos Pastores e de um Milagre da Porciúncula. Todas estas obras caracem de um estudo monotemático em globalidade, que faremos acompanhando o processo de restauro e a prossecução das pesquisas de arquivo e de campo que estão em curso.

Reinoso viu-se em 1623 desligado das obrigações inerentes à Bandeira de S.Jorge (dos "oficias mecânicos"), por requerimento que foi favoravelmente despachado por alvará régio.

A empreitada fresquista do Convento dos Capuchos, revelada nesta breve obra, constitui apenas mais um contributo para a inventoriação da sua obra, porquanto se trata de uma empreitada menor, certamente recuada (1º quartel do século XVII, onde as apetências tenebristas do pintor se não acham ainda plenamente assumidas. Se as afinidades estilísticas destes "frescos" com outras telas e tábuas de Reinoso são inegáveis - com as telas de Óbidos e de Beja, por exemplo -, lidamos ainda com um pintor inexperiente, que em jeito de transição estética avança com timidez um tratamento formal dos figurinos, já diferenciado dos velhos e esgotados modelos maneiristas.

A identificação fica assente. Urge, agora, avançar com a reintegração ou eventual remoção destes "frescos" do Convento dos Capuchos (7), sem o que nos veremos desapossados, num futuro próximo, de mais duas obras valiosas do nosso património pictural.

Notas:

(1) - ...
(2) - Junta distrital de Lisboa - Monumento e Edifícios Notáveis do Distrito de Lisboa, Vol. II (Lisboa, 1963), pp.21-22.
(3) - José Alfredo da Costa Azevedo - Velharias de Sintra I - p.35.
(4) - Roubo ocorrido por volta de 1972, segundo informação do nosso bom amigo José Alfredo Azevedo.
(5) - J.M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal no século XVIII (Fundação Calouste de Gulbenkian, 1980).
(6) - Ibidem.
(7) - Nota do site: o texto de Vitor Serrão contém informação de inegável valor e pertinência, mas também assume propostas relativamente ao restauro e/ou conservação dos frescos com as quais não estamos em acordo. Esta eventual "remoção" dos frescos é precisamente uma proposta à qual nos opomos frontalmente.

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