Comissário da Paisagem Cultural de Sintra
Durante décadas os problemas relacionados com a recuperação de um monumento, de um centro histórico, mesmo de uma paisagem, resumiam-se essencialmente à optimização das técnicas interventivas, tendo em vista preservar a autenticidade do bem e, tanto quanto possível, conciliar, sob o ponto de vista da ciência dos materiais, os novos produtos empregues nos restauros com as estruturas originais. Tratava-se, pois, de um assunto eminentemente técnico, no âmbito da engenharia e do restauro, o qual – pesem embora várias diferenças de escola – não constitui hoje motivo de especial polémica, encontrando-se de há muito consensualizados os processos mais eficazes a aplicar.
Muitas vezes um visitante não é especialmente atraído pelo estilo de um edifício, pelo rigor urbanístico de um bairro, ou pela raridade de uma espécie vegetal,
A nossa época não se contenta com exactidões matemáticas, antes procura as insondáveis subtilezas inerentes ao subjectivo. Usufruir um sítio, contemplá-lo, não se faz só com o cérebro, mas também – e principalmente – com a alma.
Evidentemente que a reabilitação de um centro urbano, a recuperação de imóveis ou de jardins históricos, implicam necessariamente a utilização das técnicas credenciadas, a nível internacional, pela ciência e pela prática. Mas haverá também que saber conciliá-las com a intransigente protecção do "génio do lugar", sob pena de transformar um organismo vivo num simples corpo embalsamado.
Este é um desafio da actualidade, dos nossos tempos, da nossa geração. As soluções não são simples, nem universais, nem mesmo unânimes. Mas há que encarar de frente o problema, evitando sempre as respostas mais fáceis, as intervenções estandardizadas, os lugares-comuns.
Trata-se de evidenciar e preservar a componente imaterial que envolve um monumento, um centro histórico, uma paisagem, componente imaterial que muitas vezes se cristalizou no imaginário colectivo não só por directa acção das intrínsecas características ambientais de um objecto, de um local, mas também a partir
de determinada visão privilegiada a dada altura fixada num poema, num romance, num texto de viagem, numa tela, e que veio ulteriormente a condicionar não só o modo de olhar e de usufruir esse bem patrimonial, mas também a criar expectativas previamente construídas no imaginário dos potenciais visitantes.
Poetas como Lord Byron, escritores como Pierre Loti, ou os pintores orientalistas – entre tantos outros –, emprestam-nos os seus olhos para, através deles, contemplarmos a realidade. E tanto mais nos sentimos identificados com essa mesma realidade quanto a nossa própria observação coincida com os parâmetros culturais previamente adquiridos, acreditados – e tantas vezes sonhados.
Como actuar, pois, para preservar, para manter viva essa componente imaterial, esse património intangível – a “alma” de um sítio?
Em primeiro lugar,
Para tal importa não só analisar detalhadamente o bem patrimonial em causa, em todas as suas vertentes materiais, necessariamente solidárias e complementares, procedendo a uma minuciosa observação directa,
Em última análise,
Deverá também deixar passar algum tempo, amadurecer as ideias, as emoções, e agir sem pressas, imbuir-se do ritmo do próprio lugar e não se precipitar em função de pressões de mercado ou de calendarizações políticas. Uma acção impensada, inadequada e superficial, poderá prejudicar mais um bem patrimonial do que largas décadas de simples abandono; poderá fundamentalmente prejudicar, entenda-se, a sua componente imaterial, a sua dimensão sensível e vivencial.
Acreditamos que na recuperação e valorização de um monumento, de um centro histórico, de uma paisagem, o interventor revela a sua ciência, ponderação, maturidade e qualidade na ordem inversa da visibilidade das marcas que vier a deixar na realidade patrimonial e ambiental pré-existentes, perante o observador comum.
Em questões de património histórico e ambiental, à inteligência e ao saber ter-se-á necessariamente de aliar a humildade, a serenidade e a independência de pensamento.
Decerto que arquitectos, paisagistas e outros terão múltiplas ocasiões, ao longo das suas carreiras, de inovar, de mostrar a sua força criativa, de transmitir as suas mensagens personalizadas como artistas e como homens, de marcar o seu cunho na roda do tempo. Mas não – decididamente não – ao actuar sobre o legado patrimonial. Aqui, as intervenções deverão ser minimalistas e forçosamente condicionadas não só pelas especificidades materiais dos bens, mas ainda – e, arriscaríamos a dizer, principalmente – pelas suas especificidades ambientais, pelo seu genius loci.
Esta é fundamentalmente, como já referimos, uma preocupação da nossa época e, como tal, desde há alguns anos tem ocupado o centro das discussões nas principais sedes pensantes que se ocupam das questões do Património, da Cultura, do Ambiente e do Homem de forma interactiva – como a UNESCO.
E é uma preocupação da nossa época porque a preservação da dimensão imaterial de um objecto artístico, de um local histórico, se prende hoje com o próprio equilíbrio psíquico e afectivo do indivíduo e, em derradeira análise, da própria sociedade.
Vivemos num contexto cada vez mais permanente de não-lugares, de espaços indiferenciados e desumanizados; vivemos cada vez mais sob a pressão dos instantes que se escoam e não mais regressam, das horas e dos anos que passam céleres
e se esfumam como nuvens sopradas por um vento constante e implacável.
Os monumentos, os centros históricos, as paisagens, são algumas das principais âncoras que nos restam. Mas apenas se o sonho que sobre eles construímos não se desfizer; apenas se nós, interventores do Património, soubermos manter viva –
e mesmo, porventura, revivificar – a personalidade própria de cada sítio, a sua alma mater.
(Texto retirado deste website)
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